segunda-feira, 23 de abril de 2018

A morte da gata


         As duas meninas, sete e nove anos, brincavam na calçada.
        Nas proximidades, a gata rueira, impossível de ser contida nos limites da casa, como todos os felinos.
        A bichana resolveu atravessar a rua. Um automóvel aproximava-se, veloz. Ela esgueirou-se, rápido. Escapou por um triz, como sempre, valendo-se das “sete vidas” com que o imaginário popular brinda a agilidade dos felinos.
Certamente gastou a última, porquanto outro carro vinha em sentido contrário e a pobre foi colhida por rodas implacáveis.
        Em segundos expirava, velada pelas meninas que choravam em desolação, traumatizadas com a violência presenciada, inconformadas com a perda de sua Juju.
        – Papai, a Juju cumpriu um carma?
        – Não, filhinha. Animais não têm dívidas a pagar. São conduzidos pelas forças da natureza, sob orientação do instinto.
        – Mamãe dizia que era uma criminosa, destruidora de cortinas e estofados!
        – Não fazia por mal… Apenas afiava as garras, como todo felino.
        – Podemos orar por ela?
        – Certamente! Será como se lhe fizessem um carinho à distância.
        – Quando morrermos, vamos encontrá-la?
        – Talvez… As almas dos animais não costumam demorar-se no Além.
        – Animal também reencarna?
        – Sim. Faz parte de sua evolução.
        – Gato pode reencarnar como cachorro?
        – Sem dúvida, e também em outras espécies, em constante desenvolvimento, ao longo dos milênios.
        – Que bom papai! A Juju poderá voltar como filha de nossa Baby!
                               ***
        Tempos depois, Baby, a cadelinha, despejou no mundo quatro filhotes.
        As meninas encantam-se, particularmente com a menor.
        – Veja, papai! Tem a mesma cor de nossa Juju e até os olhos puxadinhos. Deve ser ela!
        – Pode ser, filhinha – sorriu o pai, condescendente.
Não seria caridoso contestar a animadora fantasia.
Afinal, não era impossível… Como devassar os meandros da evolução, a progressão das experiências, as espécies a que se liga o princípio espiritual, na longa jornada rumo à consciência?…
        – Podemos ficar com ela?
        – Se quiserem…
        – Vai chamar-se Juju.
        – Tudo bem.
Observando o entusiasmo das meninas, conjecturava o pai, com seus botões:
         “Ah! Vida abençoada! Sempre a brotar, irresistível, plena de esperanças, sobrepondo-se à desolação da morte!”

Richard Simonetti
e-mail: richardsimonetti@uol.com.br


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