Pela primeira vez, em
muitos anos, o Doutor Ricardo estava em férias. Acompanhado de Cristina, a dedicada esposa, desfrutava de merecido descanso em estância hidromineral. Era uma abençoada trégua na rotina estafante de médico obstetra.
Enquanto a esposa
repousava após o almoço, ele, irrequieto como sempre, pouco afeito à inatividade, transitava por aprazível parque público, semeado de árvores frondosas e convidativos bancos.
Detendo-se junto a gracioso lago artificial, observara, discretamente, simpática senhora em cadeira de rodas, sob os cuidados de uma jovem. Admirou-se da solicitude da enfermeira, que se
desvelava em atenções em favor da
enferma. Esta não lhe era estranha.
Não foi difícil lembrar-se. Tratava-se,
certamente, de dona Júlia, que fora sua paciente há pelo menos vinte e cinco anos. Desde então, não tiveram nenhum contato. Tão seguro reconhecimento,
após tanto tempo, era decorrente das circunstâncias marcantes que
caracterizaram seu relacionamento.
Júlia concebera o primeiro filho aos quarenta e cinco anos. No início da gestação, sofrera duas fortes emoções: inicialmente, a constatação de que estava
com sífilis, vítima indefesa dos
desregramentos do esposo. Logo depois, ele morrera, envolvido em grave acidente automobilístico.
Ricardo
sugerira o aborto terapêutico. Levar adiante
a gestação, considerada a soma dessas circunstâncias
adversas, constituía um grande risco em
relação à sua própria integridade física. Por outro
lado, o bebê poderia sofrer graves limitações físicas e
mentais. Mais provável que viesse à luz natimorto.
Obstinadamente,
Júlia recusou seguir sua orientação. Discutiram, mas ela foi irredutível: Queria o bebê. Tudo correria bem. Confiava em Deus. O Senhor não a desampararia!...
Ricardo
não soubera do desfecho, porquanto a
paciente transferira residência para cidade distante, no quarto mês de gestação. Curioso, aproximou-se:
— Desculpe, senhora. Seu
nome é Júlia?...
— Prazer em vê-lo, Doutor Ricardo. Reconheci-o
tão logo o vi. Está muito bem! Os anos não lhe
pesaram!...
Conversaram
durante algum tempo. A jovem afastara-se, discretamente, deixando-os à
vontade. O médico desejava indagar a respeito do bebê, mas conteve-se, temendo ser indiscreto, a revolver velhas feridas, tendo em vista seu sombrio prognóstico. Buscando evitar o melindroso assunto, comentou:
— Vejo que tem estado doente...
— Sim, há dois anos. Fui acometida por uma esclerose
amiotrófica. Só não fiquei inteiramente paralisada
graças à competência dos médicos que me
atenderam e aos préstimos dessa adorável criatura que
me acompanha. Ela se multiplica em cuidados,
ajudando-me nos intermináveis exercícios. Mais que
isso: socorre-me nos momentos de dor. Conforta-me se estou angustiada.
Estimula-me se perco o ânimo. Sempre prestativa, alegre e gentil, é
o cireneu abençoado que Deus colocou em meu caminho, amparando-me em minha provação.
— Apesar de seus problemas, a senhora foi afortunada.
Encontrar um anjo como enfermeira é como ganhar na loteria!...
— Concordo plenamente... Só
que ela é bem mais do que uma simples enfermeira...
Abrindo
sorriso brejeiro, como criança que faz
arte, arrematou:
— Ela é minha filha muito querida. Aquela mesma
filha que não teria nascido se eu seguisse sua recomendação,
meu caro doutor!...
Ricardo viu-se a sorrir também, feliz por ter se equivocado em seu prognóstico, a considerar, intimamente, que o coração materno, não raro, enxerga muito além da
acanhada visão dos médicos da Terra.
* * *
Há situações aflitivas
comparáveis a processo gestatório difícil, de perspectivas sombrias. Muitos tentam livrar-se delas fugindo às suas
responsabilidades, como a mulher que interrompe
indesejável gravidez.
Os que resistem a esse
impulso verificam, mais tarde, que sua perseverança no cumprimento do dever partejou potencialidades que enriquecem suas vidas, tornando-os
mais fortes e destemidos, capazes de enfrentar com serenidade os
temporais da existência e de edificar com segurança a própria felicidade.
Richard Simonetti
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richardsimonetti@uol.com.br