domingo, 28 de outubro de 2018

É o prognóstico


Pela primeira vez, em muitos anos, o Doutor Ricardo estava em férias. Acompanhado de Cristina, a dedicada esposa, desfrutava de merecido descanso em estância hidromineral. Era uma abençoada trégua na rotina estafante de médico obstetra.
Enquanto a esposa repousava após o almoço, ele, irrequieto como sempre, pouco afeito à inatividade, transitava por aprazível parque público, semeado de árvores frondosas e convidativos bancos.
Detendo-se junto a gracioso lago artificial, observara, discretamente, simpática senhora em cadeira de rodas, sob os cuidados de uma jovem. Admirou-se da solicitude da enfermeira, que se desvelava em atenções em favor da enferma. Esta não lhe era estranha. Não foi difícil lembrar-se. Tratava-se, certamente, de dona Júlia, que fora sua paciente há pelo menos vinte e cinco anos. Desde então, não tiveram nenhum contato. Tão seguro reconhecimento, após tanto tempo, era decorrente das circunstâncias marcantes que caracterizaram seu relacionamento. Júlia concebera o primeiro filho aos quarenta e cinco anos. No início da gestação, sofrera duas fortes emoções: inicialmente, a constatação de que estava com sífilis, vítima indefesa dos desregramentos do esposo. Logo depois, ele morrera, envolvido em grave acidente automobilístico.
Ricardo sugerira o aborto terapêutico. Levar adiante a gestação, considerada a soma dessas circunstâncias adversas, constituía um grande risco em relação à sua própria integridade física. Por outro lado, o bebê poderia sofrer graves limitações físicas e mentais. Mais provável que viesse à luz natimorto.
Obstinadamente, Júlia recusou seguir sua orientação. Discutiram, mas ela foi irredutível: Queria o bebê. Tudo correria bem. Confiava em Deus. O Senhor não a desampararia!...
Ricardo não soubera do desfecho, porquanto a paciente transferira residência para cidade distante, no quarto mês de gestação. Curioso, aproximou-se:
Desculpe, senhora. Seu nome é Júlia?...
Prazer em vê-lo, Doutor Ricardo. Reconheci-o tão logo o vi. Está muito bem! Os anos não lhe pesaram!...
Conversaram durante algum tempo. A jovem afastara-se, discretamente, deixando-os à vontade. O médico desejava indagar a respeito do bebê, mas conteve-se, temendo ser indiscreto, a revolver velhas feridas, tendo em vista seu sombrio prognóstico. Buscando evitar o melindroso assunto, comentou:
Vejo que tem estado doente...
Sim, há dois anos. Fui acometida por uma esclerose amiotrófica. Só não fiquei inteiramente paralisada graças à competência dos médicos que me atenderam e aos préstimos dessa adorável criatura que me acompanha. Ela se multiplica em cuidados, ajudando-me nos intermináveis exercícios. Mais que isso: socorre-me nos momentos de dor. Conforta-me se estou angustiada. Estimula-me se perco o ânimo. Sempre prestativa, alegre e gentil, é o cireneu abençoado que Deus colocou em meu caminho, amparando-me em minha provação.
Apesar de seus problemas, a senhora foi afortunada. Encontrar um anjo como enfermeira é como ganhar na loteria!...
Concordo plenamente... Só que ela é bem mais do que uma simples enfermeira...
Abrindo sorriso brejeiro, como criança que faz arte, arrematou:
Ela é minha filha muito querida. Aquela mesma filha que não teria nascido se eu seguisse sua recomendação, meu caro doutor!...
Ricardo viu-se a sorrir também, feliz por ter se equivocado em seu prognóstico, a considerar, intimamente, que o coração materno, não raro, en­xerga muito além da acanhada visão dos médicos da Terra.

* * *
Há situações aflitivas comparáveis a processo gestatório difícil, de perspectivas sombrias. Muitos tentam livrar-se delas fugindo às suas responsabilidades, como a mulher que interrompe indesejável gravidez.
Os que resistem a esse impulso verificam, mais tarde, que sua perseverança no cumprimento do dever partejou potencialidades que enriquecem suas vidas, tornando-os mais fortes e destemidos, capazes de enfrentar com serenidade os temporais da existência e de edificar com segurança a própria felicidade.



Richard Simonetti
e-mail: richardsimonetti@uol.com.br

domingo, 21 de outubro de 2018

E a vida continua


No livro E a vida Continua, André Luiz prossegue em seus relatos de observação, estudo e trabalho na Espiritualidade.
Ao apresentá-lo em sua nova empreitada Emmanuel assim se expressa: “Conquanto as personagens da história aqui relacionadas – todas elas figuras autênticas, cujos nomes foram naturalmente modificados para não ferir corações amigos na Terra – tenham tido, como já dissemos, experiências muito diversas daquelas que caracterizam as trilhas do próprio André Luiz, em seus primeiros tempos na Espiritualidade, é justo considerar que os graus de conhecimento e responsabilidade variam ao infinito.”
Evelina Serpa e Ernesto Fantini, encontram-se em uma estância de águas medicinais, Poços de Caldas e, por aparente acaso, ficam sabendo que estão com a mesma doença renal e em breve deverão se submeter a delicada e perigosa cirurgia.
Aos poucos, do diálogo sobre a doença, diagnóstico, terminologia cientifica da mesma, a troca de informações e o partilhamento de ideias e dores vai unindo cada vez mais, sob o aspecto espiritual, aquelas duas almas que não haviam encontrado parceiros afins com seus sentimentos e emoções.
“A mirada recíproca lhes fazia observar que haviam caminhado, a passos compridos, para a intimidade profunda.
Onde vira antes aquela jovem que a beleza e o raciocínio tanto favoreciam? – pensava Ernesto atordoado.
Em que lugar teria encontrado alguma vez aquele cavalheiro maduro e inteligente que tão bem conjugava simpatia e compreensão? – Refletia a senhora Serpa, incapaz de esconder o agradável assombro que a dominava”.
Chega o momento da partida e ambos já com o destino marcado para a cirurgia.
“- Bem senhor Fantini, se houver outra vida, além desta, e se for vontade de Deus que venhamos a sofrer, em breve, a grande mudança, creio que nos veremos de novo e seremos lá bons amigos...”
Mentalmente “procuremos enxergar” o reencontro.
“Evelina despertou num quarto espaçoso, com duas janelas deixando ver o céu.
Energia de um sono profundo, pensou.”
Sim era muito mais que um sono profundo...
Passam os primeiros instantes. Subitamente sente-se como estivesse em um agradável balneário. Ao derredor pessoas simpáticas e amigas, porém que ela não conhecia.
Evelina interrogava-se, quanto ao melhor processo de estabelecer contato com alguém, quando viu um homem, não longe, que a fitava, evidentemente assombrado. Oh! Não era aquele cavalheiro, exatamente Ernesto Fantini, o improvisado amigo das termas?
O coração bateu-lhe agitado e estendeu, na direção dele, os dois braços, dando-lhe a certeza de que o aguardava, de alma aberta.
Fantini, pois era ele mesmo, ergueu-se da poltrona em que se guardava e avançou para ela a passos rápidos.
- Evelina!... Dona Evelina!... Estarei realmente vendo a senhora?
- Eu mesma! – respondeu a moça, chorando de alegria.
O recém-chegado não foi estranho à emotividade daquele minuto inesquecível. Lágrimas lhe rolaram no rosto simpático e sisudo, lágrimas que ele buscava enxugar, embarcado, procurando sorrir.”
Trocam impressões sobre os novos momentos que estão vivendo após a cirurgia, as situações estranhas que estão acontecendo.
Estariam “mortos”? Mas estavam vivos!
De início julgam estar em um hospital especializado para restabelecimento, mas os fatos vão se sobrepondo até descobrirem que a vida continua, mesmo depois da morte.
Duas almas afins se reencontram. Após a morte a vida continua... e o amor também, principalmente do amor cujas raízes se prendem no solo do tempo distante.
Mesmo nesse plano espiritual passam por provas. Aprendem a trabalhar para o bem do semelhante sob a tutela e orientação do irmão Cláudio e Instrutor Ribas.
Socorrem familiares em tramas de desequilíbrio e sofrimento.
Finalmente: “A casa festejava os dois obreiro que haviam sabido vencer com devotamente a humildade os tropeços iniciais do levantamento de bem-aventurado futuro!
Rodeado de assessores, Ribas saudou-os no limiar e, tomando-os nos braços, como filhos queridos, ergueu os olhos para o Alto e rogou, comovidamente.
- Senhor Jesus, abençoa os teus servos que se consagram hoje um ao outro em sublime união”...
  
Aylton Paiva é estudioso da Doutrina Espírita para sua aplicação na pessoa e na sociedade (www.ayltonpaiva.blogspot.com).

Obs.: Artigo publicado em 25/05/2012, no Jornal Correio de Lins


domingo, 7 de outubro de 2018

O Semblante da Aflição


Eles estão aí, entre nós, quando não nós próprios, e podemos observá-los todos os dias caminhando pelas ruas, cuidando de seus afazeres, dando respostas às suas responsabilidades pela incumbência que receberam de fazer o melhor. São pessoas comuns, transportando o fardo escolhido para dar suprimento às suas próprias necessidades evolutivas. São estes e também tantos outros indivíduos entregues à ociosidade ou à desarmonia psíquica, que enfrentam os dissabores de tão angustioso sintoma da aflição.
As aflições fazem parte do estágio de purificação em que nos encontramos. Essas situações que deparamos pelo caminho, e que nos atinge em certas ocasiões nos causando sofrimentos se dá em virtude das nossas imperfeições. Os motivos são diversos: As grandes perdas, a saúde frágil, a ingratidão, o abandono, a solidão, o remorso, a desilusão, uma desavença, um desgosto, problemas familiares, insatisfação profissional, etc.
As vezes é possível identificarmos os semelhantes que passam por estes infortúnios muitas vezes ocultos por aqueles cuja personalidade não permite que sejam exteriorizados, mas que são denunciados pelos semblantes transtornados que carregam, podendo assim ser percebido pela expressão facial que revela a ausência da alegria e da satisfação de viver.
Quando a vida nos surpreende com provações inesperadas, é preciso compreender que as situações que nos chegam têm sempre uma finalidade útil, considerando-se a necessidade do aprimoramento que nos conduzirá a evolução espiritual, exigindo de nos o aperfeiçoamento das qualidades ainda carentes de entendimento e assimilação, e quando nos deixam erosões desastrosas é o momento de buscarmos a serenidade através da resignação e da fé que estimula à busca de soluções, e ao exercício da paciência.
A solidariedade é um caminho para se alcançar a superação nessas fases em que todos nós precisamos nos ajudar reciprocamente: Ao aflito, a necessidade da fé e da humildade que o coloca em condições de igualdade com outros irmãos, abrindo as portas do coração e fechando as porteiras do orgulho, induzindo-o à busca e a aceitação da ajuda necessária à superação. Ao socorrista solidário, o amor e a abnegação no exercício do auxilio caridoso da atenção, da palavra orientadora e confortadora, e da ação providencial muitas vezes necessária.
A meu ver a vivência terrena é um período de aquisições valiosas na área dos sentimentos, cujas aflições servem como corrigenda, mas também como parâmetro para avaliação das verdadeiras condições de equilíbrio do espírito, de acordo com o seu potencial de superação.
(Inspirado: No Evangelho Segundo o Espiritismo – Cap - V)

Nelson Nascimento
e-mail: nelson.nascimento1@yahoo.com.br
Lins-SP